Olavo Bilac

Palestra realizada no Instituto Nacional de Musica do Rio de Janeiro, em 19 de Agosto de 1905

Não supponho que vos haja causado estranheza o enunciado do tema d'esta conferência. Ha muito tempo se diz e se escreve que são tristes todos os nossos poetas, que é triste toda a nossa poesia: a ponto que os críticos, quando estudam a nossa litteratura poética, nunca deixam de armar-se, não só de um conta-syllabas, mas também de um conta-lagrimas E possa eu, nos breves minutos que vae durar esta palestra, contribuir para libertar a poesia brasileira d'essa triste fama de se ter organisado em syndicato monopolisador de melancolias, formando o trust de todas as lagrimas do universo, e imitando nisso o desembaraço com que a Rio Ligth acaba de açambarcar todas as companhias de bonds do Rio de Janeiro Antes de tudo, que é a tristeza ? Quando passageira, é um estado normal. Quando contínua e invencível, é uma enfermidade. Um homem equilibrado e forte, dotado de saúde physica e moral, em plena pujança de vida, não pôde ser constantemente e inalteravelmente triste, como não pôde ser constantemente e inalteravelmente alegre. Dae-me um macambuzio, um homem fundamentalmente e pavorosamente triste: um pouco de massagem muscular, um pouco de exercício, algumas distrações, alguns banhos electricos, um pouco de peptonato de ferro, ou ainda algumas transfusões sub-cutaneas de um soro artificial podem facilmente dar cabo da tristeza d'esse homem... Se admittirmos sem hesitações a “theoria do meio”, reconheceremos que não ha no Brasil um só motivo para que cada brasileiro seja um cypreste humano, sempre debruçado sobre a cova em que jaz sepultada a sua alegria. Para estudar e comprehender a tristeza de um poeta, de um grupo de poetas, de uma litteratura, é preciso, antes do mais, comprehender que um poeta alegre pôde ser um homem pouco dado á alegria, e que um homem jovial pôde ser um poeta triste. Entre o homem e o escriptor, — ou, melhor: entre o homem- machina, que come, digere e dorme, e o homem-pensamento, que imagina, concebe e executa,— ha muitas vezes, ha quasi sempre um largo abysmo. A emoção, todos os homens a podem ter, — todos, com excepção dos cretinos: não há homem normal, que não seja capaz de sentir e comprehender a belleza de uma paizagem, a belleza de uma mulher, a belleza de um acto moral. Isso quer dizer que a boa, a legitima creação poética nunca é instantânea: é sempre separada, por uma phase mais ou menos dilatada, do abalo moral que a produziu. Um poeta estudante, bohemio, em fim de mez, no pobre quarto da republica em que mora... Para illudir o estômago, que pede um almoço... impossível, esse poeta está escrevendo versos. Versos de amor, versos lyricos, versos tristes, cheios de ais, cheios de suspiros, e cheios de tantas lagrimas, que, se ellas fossem reaes, o papel, o tinteiro, a mesa, o poeta ficariam nadando num vasto mar de pranto. De repente, batem á porta: é um carteiro. Uma carta registrada... É a mezada! é dinheiro! O estudante dá um salto, beija o vale postal, beija o carteiro, e põe-se a rodopiar pelo quarto, numa valsa infernal. Vae sahir, vae almoçar, vae forrar da miséria o estômago... Mas lembra-se do soneto inacabado: e, apezar de estar alegre como um dia de sol, acaba o soneto no mesmo tom, com os mesmos ais, os mesmos suspiros, as mesmas lagrimas. O homem está contente, porque tem dinheiro, e vae almoçar: mas o poeta continua a ser triste, porque é poeta. A Tristeza, filha da agonia sem nome das almas que vivem a esbarrar contra a muralha do Mysterio que as rodeia, é uma concentração, é uma rebellião, é um protesto das almas fortes contra a hostilidade e a ferocidade do incognoscivel ; — e isso não pôde ser confundido com o choramigar infantil e impertinente dos vates de aldeia, que se queixam da ingratidão das suas namoradas, como se queixariam de uma dor de ouvido ou de uma dor de dente. Assim, quando o poeta alarga o âmbito da sua inspiração, e começa a preoccupar-se, já não com o seu amor unicamente, mas com o vasto soffrimento humano que o cerca, — a sua poesia é triste, porque é pessimista. Houve, no século XVIII, no Brasil, minhas senhoras e meus senhores, um poeta, que só escreveu versos alegres. Versos alegres? — versos rancorosos! versos satânicos! versos que tinham em cada syllaba uma gotta de veneno e em cada rima uma frécha de ponta acerada! Esse poeta foi Gregorio de Mattos, um demônio humano, que viveu em guerra aberta contra o céo e contra a terra, ferindo todos os ridículos, criticando todos os costumes, invectivando todos os seus contemporâneos... Achaes que são alegres os versos de Gregorio de Mattos? Pensae bem, e reconhecereis que elles são mais tristes do que todos os versos gemedores de Casimiro de Abreu... São mais tristes, porque são uma explosão de revolta e de ódio, porque são as lavas de uma erupção de descontentamento e de cólera! Os poetas são estuários, em que se vêem confundir as torrentes de idéias e de sentimentos que agitam as Idades; são espelhos, em que se vêem reflectir e concentrar os feixes de raios ardentes em que se abraza e consome o Ideal Humano. E, como o mundo será sempre triste, porque a vida será sempre um mysterio, — também os poetas serão sempre tristes, porque serão sempre os interpretes d'esta grande e dolorosa duvida humana, d'esta curiosidade insaciável, d'esta desesperadora ignorância do que somos e do que seremos... ■


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